Fim do voto de qualidade no Carf é imposição do princípio da moralidade

Foi publicada a Lei 13.988/2020, que, além de disciplinar a transação em matéria tributária, introduziu o artigo 19-E à Lei 10.522/02. Referido dispositivo extinguiu o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em caso de empate no julgamento. Segundo prevê o artigo em questão, havendo empate não mais será facultado ao presidente do órgão colegiado votar pela segunda vez para resolver definitivamente a questão.

Muitas têm sido as manifestações favoráveis e contrárias à referida norma, merecendo destaque os artigos anteriormente publicados neste espaço por Hugo de Brito Machado Segundo [1] e Igor Mauler Santiago [2]. Três ADIs foram ajuizadas apontando inconstitucionalidades formais e materiais no referido dispositivo legal.

Quanto às inconstitucionalidades formais, inicialmente alega-se tratar de um “contrabando legislativo”, espécie já rechaçada pelo STF no julgamento das ADIs nº 5127 e nº 5012. Ocorre que as normas atacadas nessas ações padeciam de falta de pertinência grosseira com o conteúdo temático da lei em que estavam insertas. Definitivamente, o disposto no artigo 19-E da Lei 10.522/02 não é uma hipótese de “contrabando legislativo” ou de um “jabuti”, já que a regra por ele veiculada guarda absoluta pertinência temática com a matéria tratada pela Lei 13.988/20, a qual disciplina o crédito tributo tributário em seu sentido amplo, especialmente no que concerne à sua extinção. Trata-se de lei que busca reduzir a litigiosidade e, por certo, a extinção do voto de qualidade é uma das medidas aptas a tal fim, pois extinto o crédito tributário não mais será ajuizada ação para questioná-lo perante o Poder Judiciário, o que, sem dúvidas, ocorre quando a cobrança é mantida na esfera administrativa.

No que diz respeito às inconstitucionalidades formais apontadas, entendemos que o disposto no artigo 28 da Lei 13.988/20 não agrediu o princípio democrático, pois, ainda que de forma abreviada, tramitou no âmbito do Poder Legislativo e, também, sofreu a chancela do Poder Executivo, visto que foi aprovado sem vetos.

No que concerne às alegadas inconstitucionalidades materiais, a extinção do voto de qualidade não agride o interesse público, aliás o agasalha e o enaltece, na medida em que, havendo dúvida séria em relação à cobrança do crédito tributário, tal dúvida se resolverá em favor do contribuinte.

Na linha do que leciona Renato Alessi, há de se distinguir interesse público primário de interesse público secundário, sendo o primeiro aquele que dá guarida às prioridades da sociedade e o segundo, às do Fisco.

Quer parecer que aqueles que apontam a agressão ao interesse público o fazem em relação ao secundário e penso que não seja o mais adequado. O que há de prevalecer é o interesse público primário, qual seja, o da sociedade.

Há ainda de se distinguir o interesse público do interesse privado do poder público. A preocupação com o eventual prejuízo à arrecadação, a par de ser consequencialista, dá guarida aos interesses da Fazenda Pública e não aos da sociedade.

Portanto, a extinção do voto de qualidade é imposição do princípio da moralidade.

A moralidade administrativa é princípio norteador de toda a ação administrativa, sendo defeso ao agente público agir em descompasso com os padrões éticos e de justiça aceitos pela sociedade.

Sob o prisma da moralidade, a satisfação do requisito de legalidade do ato não é suficiente. É necessário ir adiante na investigação da atividade administrativa para verificar se o conjunto de seus elementos realmente sustenta o interesse público ou apenas dá a falsa impressão de que o faz.

O princípio da moralidade, permeado pela ética na conduta administrativa, impõe à Administração Pública a necessidade de se submeter aos ditames legais, observando a pauta de valores morais vigentes no corpo social para consecução do interesse público. O atuar da administração motivado por interesse particular implica violação ao princípio da moralidade.

Segundo ensina Marçal Justen Filho:

“O princípio da moralidade pressupõe a existência e o respeito aos interesses privados, mesmo que egoísticos, dos não exercentes do poder público. A expressão ‘interesse público’ deve ser interpretada em consonância com os princípios norteadores de um Estado de Direito democrático, o que significa o reconhecimento da multiplicidade de interesses e a impossibilidade de eliminar sua contraposição” [3].

Conforme leciona ainda o referido autor:

“O Estado de Direito democrático, tal como aquele consagrado pela CF/88, reconhece que a supremacia do interesse público não significa supressão de interesses privados. Um dos mais graves atentados à moralidade pública consiste no sacrifício prepotente, desnecessário ou desarrazoado de interesse privado. O Estado não existe contra o particular, mas para o particular. (…) O Estado não existe para buscar satisfações similares às que norteiam a vida dos particulares. A tentativa de obter maior vantagem possível é válida e lícita observados os limites do Direito, mas apenas para os sujeitos privados. Não é conduta admissível para o Estado, que somente está legitimado a atuar para realizar o bem comum e a satisfação geral. (…) Não se legitima o ardil sob o argumento de que se destina a abarrotar de recursos os cofres públicos” [4].

O administrador público deve atuar com boa-fé conferindo a cada um o que é seu e satisfazendo não somente a exigências legais, como morais.

Com a extinção do voto de qualidade, havendo dúvida quanto à legalidade do lançamento, em razão de mais de uma interpretação possível sobre a aplicação da lei ao caso concreto, a incerteza deve se resolver em favor do contribuinte, por imposição do princípio da moralidade. Sendo o processo administrativo uma reavaliação realizada pelo Poder Executivo sobre os próprios atos, este só estará autorizado a exigir tributos cujo fato jurídico-tributário seja inequívoco, sob pena de cobrança de tributo com efeito de confisco, o que é terminantemente vedado pelo texto constitucional.

Finalmente, o voto de qualidade é distinto de voto de desempate e, também, do peso dúplice do voto do presidente. É certo que o processo administrativo federal demanda uma profunda reestruturação, no bojo da qual a introdução do voto de desempate atribuído a um julgador imparcial, que não participe do julgamento, seria o desejável.


[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-06/consultor-tributario-lei-1398820-fim-voto-qualidade-carf?imprimir=1>.

[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/consultor-tributario-voto-qualidade-contribuintes-vale-tanto-quanto-anterior?imprimir=1>.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade pública e o direito tributário. In: Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 67, p. 73.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade pública e o direito tributário. In: Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 67, p. 73.

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