O principal impacto da suspensão do artigo 29 da MP n. 927/2020 no âmbito tributário
por Matheus Schwertzer Ziccarelli Rodrigues
No dia 29 de abril, o plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu, liminarmente, dois trechos da Medida Provisória n. 972/2020, responsável por dispor sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19). A decisão foi proferida no julgamento de medida liminar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP.
Entre os artigos cuja eficácia foi suspensa, destacamos o artigo 29, segundo o qual “[o]s casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. O referido dispositivo tinha como objetivo evitar que as empresas fossem responsabilizadas pela transmissão da Covid-19 aos seus empregados, sem que restasse demonstrado um nexo causal entre a atividade ou o ambiente de trabalho e o contágio.
Desta forma, a caracterização da doença como ocupacional dependeria da comprovação de que a empresa não adotou todas as medidas necessárias para manutenção da higidez do posto laboral dos empregados. E tal intenção, pelo menos prima facie, é de todo legítima, uma vez que, por se tratar de uma doença altamente contagiosa e que, na maioria das vezes, não guarda relação com o trabalho, não parece razoável admitir uma imputação automática de responsabilidade às empresas.
Por sua vez, a suspensão do referido artigo pelo STF foi fundamentada principalmente no argumento de que o dispositivo prejudicaria inúmeros trabalhadores de atividades essenciais e de risco que continuariam expostos ao vírus, bem como, imporia aos empregados a produção de provas impossíveis de serem produzidas, para fins de demonstrar a existência de nexo causal entre o contágio e a atividade.
No atual cenário, é certo que não podemos admitir que a suspensão da eficácia do artigo 29 implica reconhecimento automático da Covid-19 como doença ocupacional. Ocorre que, enquanto, antes, só se considerava a Covid-19 como doença ocupacional se comprovado pelo empregado que ele a adquiriu em razão das atividades laborais, atualmente, parece-nos que o ônus probatório foi invertido para o empregador, que deve demonstrar que adotou todas as medidas de segurança, medicina e higiene do trabalho, a fim de conter a contaminação e propagação do coronavírus.
Sem desconsiderar o caráter protetivo ao empregado da referida suspensão pelo STF, é preciso destacar que o reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional implica certos ônus aos empregadores, como a estabilidade por 12 meses do empregado afastado, após seu retorno ao trabalho, manutenção dos depósitos do FGTS no período de inatividade e, em âmbito tributário, a majoração das alíquotas da contribuição previdenciária destinada ao Risco Ambiental do Trabalho (RAT), antigo Seguro Acidente do Trabalho (SAT).
A contribuição previdenciária em comento está disciplinada no artigo 22, inciso II da Lei 8.212/1991, que dispõe sobre o custeio da Seguridade Social. O mencionado artigo coloca como contribuição a cargo das empresas o financiamento dos benefícios de aposentadoria especial e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho.
A contribuição incide sobre o total das remunerações pagas ou creditadas pela empresa, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, no percentual de: 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve; 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio; 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave.
Considerando que o artigo 22, inciso II, da Lei 8.212/1991 carece de regulamentação para sua aplicação, o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048/1999, veio para suprir tal carência, inserindo em seu Anexo V a relação de atividades preponderantes e os correspondentes graus de risco. Diante disto, fixou-se critério objetivo de aferição da alíquota do RAT em função da atividade econômica preponderante na empresa.
Neste cenário, foi promulgada a Lei 10.666/2003, que, em seu artigo 10º, dispôs sobre a possibilidade de redução, em até cinquenta por cento, ou aumento, em até cem por cento, da contribuição do RAT, conforme previsto no regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo.
Ato contínuo, por meio do Decreto nº 6.042/2007, o Presidente da República alterou o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto no 3.048/1999, para dispor em seu artigo 202-A sobre a criação do Fator Acidentário de Prevenção – FAP, que passaria a servir de instrumento para aferição do desempenho da empresa em relação à sua respectiva atividade. O FAP é calculado levando em consideração o número de acidentes de trabalho, óbitos, invalidades ou doenças ocupacionais nos estabelecimentos da empresa.
Ainda, merece destaque que o FAP anual reflete a aferição da acidentalidade nas empresas relativa aos dois anos imediatamente anteriores ao processamento (exemplo: o FAP 2020 tem como período-base de cálculo janeiro/2018 a dezembro/2019) e o período de vigência do FAP anual é o ano imediatamente posterior ao ano de processamento (exemplo: o FAP 2020 terá vigência de janeiro a dezembro de 2021).
Deste modo, verificamos que o legislador criou o incentivo fiscal em comento, visando induzir o empregador a investir em segurança e saúde no trabalho, com o intuito de prevenir os acidentes do trabalho, efetivando diversos preceitos constitucionais, como aqueles previstos nos artigos 6º[1] e 23º, inciso II[2], e, principalmente, o artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal, que estabelece como direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Como incentivo à realização da conduta pretendida, o legislador estabeleceu, no consequente da norma indutora, a redução, em até 50% da alíquota incidente sobre a base de cálculo do RAT, bem como estabeleceu a possibilidade de aumento da alíquota em até 100%, conforme o desempenho da empresa perante suas concorrentes (empresas da mesma atividade econômica), em relação aos acidentes de trabalho.
Desta forma, premiam-se os contribuintes que realmente atuam no sentido de auxiliar o Estado na efetivação dos preceitos constitucionais, reduzindo os riscos de trabalho e, por conseguinte, as despesas da Seguridade Social, enquanto acresce-se em até 100% o tributo a ser pago pela empresa que não investe ou, pelo menos, não investe eficazmente na prevenção de acidentes do trabalho.
No atual cenário de pandemia e considerando a decisão proferida pelo STF, caso a empresa não tome os devidos cuidados de higiene e proteção contra o coronavírus e seus empregados sejam acometidos pela doença, isso resultará num Fator Acidentário de Prevenção mais elevado e, por conseguinte, numa majoração significativa da alíquota de contribuição do RAT nos dois anos subsequentes. Ainda, caso ocorram casos de óbito por Covid-19, o FAP será bloqueado automaticamente, ou seja, ainda que a empresa adote medidas de saúde e segurança no trabalho, o seu FAP jamais será menor do que o índice 1,0000.
Desta forma, cabe as empresas reforçar as medidas de segurança e saúde de
seus empregados, adotando todas as medidas necessárias de precaução e higiene,
bem como, fiscalizar individualmente cada caso de Covid-19 no ambiente laboral,
seja para prevenir uma proliferação em massa, seja para demonstrar que tomou
todas as medidas cabíveis para impedir o contágio da doença, evitando, assim,
uma majoração da carga tributária da empresa.
[1] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[2] Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;