Primeiro texto da nova coluna do JOTA analisa o cenário para a reforma do setor tributário
Artigo JOTA, 20 de setembro de 2019, 07h58
Tramitam no Congresso Nacional algumas propostas de reforma tributária, entre elas a PEC 110/2019, conhecida como “PEC do Senado”, e a PEC 45/2019, conhecida como “PEC da Câmara”, que são consideradas as mais viáveis.
A primeira reproduz a emenda substitutiva apresentada pelo então Deputado Luiz. C. Hauly (PEC 293/2004) e a segunda é fruto de estudos do Centro de Cidadania Fiscal, que foram encampados pelo Deputado Baleia Rossi.
Além das PECs 110 e 45, o Governo Federal anunciou que apresentará o seu próprio projeto de reforma tributária, que, segundo noticia-se, instituirá uma contribuição federal sobre bens e serviços, que unificará o PIS, a COFINS, o IPI e o IOF e estabelecerá a desoneração parcial da folha de salários.
Os Projetos da Câmara e do Senado, em sua essência, não são muito distintos, ambos apresentam como principal providência a simplificação do Sistema Tributário e a unificação de tributos, com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços-IBS, além de um imposto seletivo.
Em face de tal cenário, o que se questiona é, se, de fato, precisamos de uma reforma constitucional e se as propostas em questão agridem ou não a Constituição Federal.
Na esteira da lição do mestre alemão Otto Bachof, as normas que decorrem do exercício do poder constituinte derivado reformador podem ser inconstitucionais, e, para muitos, este é o caso das PECs 110 e 45, cujos textos já são conhecidos.
A despeito de termos um Sistema Constitucional bem arquitetado, harmônico e consentâneo com os fundamentos intrínsecos de um Estado Democrático e de Direito, ninguém ignora que a sua aplicação sempre foi severamente distorcida e distanciada do modelo idealizado pelo constituinte originário, o que incrementou a sua complexidade, injustiça e onerosidade.
Pensamos que a reforma ideal seria a “reforma cultural”, aquela em que o Estado tivesse mais apego aos ideais democráticos e às suas funções constitucionais e republicanas, ao legislar, fiscalizar e arrecadar tributos, e o contribuinte, de sua parte, maior consciência de cidadania fiscal, mas, certamente, esta “reforma” não ocorreria em menos de 50 anos, como proposto pela PEC 45, e, portanto, estamos convictos de que mudanças formais são necessárias.
É certo que as alterações poderiam ocorrer em nível infraconstitucional, já que os problemas, que geram as referidas complexidade, onerosidade e injustiça fiscal, concentram-se no ICMS, nas Contribuições Especiais, no IRPJ e no IRPF. [ 1 ]
Fato é que, a reforma do Sistema Constitucional Tributário permanece em pauta e em rota de aprovação pelo Congresso Nacional e, conforme indicam as projeções técnicas, as mudanças, se implementadas, lamentavelmente, não mitigarão a onerosidade da tributação, pelo contrário, haverá um aumento da carga tributária.
No que concerne à preservação das competências tributárias, a despeito dos plausíveis argumentos que vêm sendo opostos em relação à questão federativa, o modelo proposto pela PEC 45, que estabelece a fixação, pelas pessoas políticas, das alíquotas dos impostos de sua competência, além da instituição do IBS por lei complementar – que é lei nacional e não lei federal –, protege a competência tributária e a autonomia financeira dos entes federativos.
No que concerne à função regulatória e extrafiscal da tributação, a PEC 110 estabelece que o IBS não poderá ser objeto de desonerações, à exceção das relativas à medicamentos, alimentos, transporte público, saneamento básico, ensino em todos os níveis, e bens do ativo imobilizado, cuja disciplina deverá ocorrer por lei complementar. Já a PEC 45, veda a concessão de todo e qualquer benefício fiscal relativo ao referido imposto.
Quanto à proposta a ser enviada pelo Governo Federal, não se conhece ainda o seu texto, mas segundo tem sido antecipado pela equipe econômica, será eliminada a possibilidade de abatimento das despesas com saúde.
Não discordamos de que as desonerações tributárias podem ser nocivas à arrecadação e à justiça fiscal, na medida em que transferem o ônus financeiro para contribuintes não alcançados por elas, mas incentivos e benefícios fiscais são necessários para a promoção do desenvolvimento econômico e para a eliminação das desigualdades regionais. As desonerações são, assim, necessárias, desde que sejam provisórias e os seus resultados sejam aferidos em avaliações periódicas. Quanto aos benefícios fiscais que preservam a dignidade da pessoa humana, não são “favores”, ao contrário do que sugerem os idealizadores da PEC 45, mas a materialização de direitos e garantias fundamentais e assim sua vedação seria seguramente inconstitucional.
Ainda a tributação permanecerá fortemente concentrada no consumo, e o que é pior, será eliminado o princípio da seletividade como regra geral – o imposto seletivo não supre a observância da seletividade – o que demonstra que a prioridade dos relatores e também a do Governo não é a promoção da justiça social por meio da justiça fiscal.
Acreditamos que a instituição do imposto negativo contemplado nas PECs 110 e 45 – cuja implementação ocorrerá com a devolução de tributos incidentes sobre o consumo para famílias de baixa renda (PEC 110) ou com mecanismos de transferência de renda (PEC 45) – isoladamente não tem aptidão para a realização da justiça fiscal, pois é medida atrelada à disponibilidade orçamentária e, portanto, às decisões políticas dos gestores públicos.
Ninguém ignora que ostentamos elevados e inadmissíveis índices de pobreza e miserabilidade e, assim, é intolerável que os contribuintes que integram essas classes sociais permaneçam reféns de decisões equivocadas e de um sistema orçamentário ineficiente.
Uma coisa é certa, as propostas precisam ser aperfeiçoadas.
Não podemos, por exemplo, perder a oportunidade de resolver as questões relativas à tributação dos intangíveis, inserindo claramente as materialidades relativas às novas tecnologias no rol de competências impositivas, de forma que se incremente o nível de segurança jurídica dos respectivos contribuintes.
De todas as propostas de reforma constitucional surgidas nos últimos 30 anos esta, seguramente, é a que tem sido considerada com maior seriedade.
A recente constituição de Conselho Consultivo, que será formado por membro da RFB, por economistas e por juristas, certamente auxiliará no aperfeiçoamento dos textos e, consequentemente, resultará na reforma tributária que o Brasil precisa, qual seja aquela que, além de incrementar o desenvolvimento econômico e a empregabilidade, implemente uma tributação justa e promotora da justiça social, reduzindo a pobreza e gerando igualdade de oportunidades, por que, definitivamente, o Sistema Tributário pode ser um poderoso instrumento de redução de desigualdades sociais.
É, portanto, premente que sejam realizados os ajustes necessários nos projetos de reforma tributária, porque a sociedade clama por ela.
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1 Sobre a alteração do IR já nos manifestamos
anteriormente. https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/um-roteiro-para-obter-a-justica-tributaria-2jhwt5nrw92n3hibpn3jpz0hg/
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Betina Treiger Grupenmacher é advogada, professora associada de Direito Tributário da UFPR, pós-doutora pela Universidade de Lisboa, doutora pela UFPR e visiting scholar pela Universidade de Miami.