Apesar de não se tratar de situação comum, uma vez que o prazo para oferecer embargos à Execução Fiscal, nos casos em que o executado não apresenta garantia, só começa a correr a partir da intimação de eventual penhora efetuada nos autos, algumas vezes nos deparamos com contribuintes que perderam o referido prazo, mas ainda assim desejam questionar a cobrança executada judicialmente.
Primeiramente, é imperioso destacar que a perda do prazo para opor Embargos à Execução Fiscal por si só não representa a perda do direito de discutir o lançamento e a cobrança tributária, seja no próprio feito executivo seja em demanda autônoma.
Não obstante a presunção de liquidez e certeza inerente à Certidão da Dívida Ativa regularmente inscrita, o processo executivo fiscal pode conter vícios de natureza formal ou material que obstam o seu prosseguimento regular. Consoante estabelece o artigo 485, § 3º do Código de Processo Civil[1], em qualquer tempo e grau de jurisdição, o juiz poderá conhecer “de ofício” as matérias de ordem pública, entre as quais se destacam a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo, ausência de legitimidade e ainda falta de interesse processual.
Neste cenário, mesmo que transcorrido o prazo para opor Embargos à Execução Fiscal, existe a possibilidade de apresentação pelo executado de Exceção de pré-executividade, cujo escopo é demonstrar a inexistência de vínculo jurídico entre Exequente e Executado, ou ainda evidenciar a existência de vícios no processo executivo que impeçam o seu regular prosseguimento, desde que, para tanto, não demande dilação probatória.
Neste sentido, com a edição da Súmula 393, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que: A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória.
Considerando que as matérias objeto da exceção são, em regra, de ordem pública, não estão sujeitas à preclusão. Não obstante tal fato, entende-se que, a partir do momento em que a parte tem conhecimento da nulidade que eiva a execução, deve argui-la em sua primeira oportunidade.
Desta forma, ainda que limitada às matérias de ordem pública e que não demandam dilação probatória, existe a possibilidade de defesa através da Exceção de pré-executividade no próprio feito executivo mesmo após a preclusão do prazo de oposição de Embargos à Execução Fiscal.
Ainda, existe também a possibilidade de propor demanda autônoma mesmo após transcorrido o prazo para embargar a Execução Fiscal. Isto porque, além da garantia ao direito de defesa expressamente prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal[2], o artigo 38 da Lei nº 6.830/1980 é claro no sentido de que os Embargos à Execução não são o único instrumento processual adequado para discutir a dívida ativa da fazenda pública[3].
Neste cenário, o devedor tem à disposição instrumentos processuais distintos e desvinculados, sendo que cada um possui seu próprio âmbito de cabimento e limitação temporal. Assim, uma vez que o prazo para opor embargos à execução é um fenômeno interno do processo executivo, os efeitos de sua preclusão não podem irradiar sobre outras ações previstas na legislação. Trata-se de preclusão que opera efeitos tão somente no feito executivo.
Desta forma, plenamente cabível a propositura da ação anulatória pelo contribuinte, ou seja, ação de conhecimento de rito ordinário, movida com o propósito de se obter uma tutela jurisdicional que implique o desfazimento do ato administrativo de lançamento por conta de nulidade nele verificada.
Quanto às possíveis nulidades, Hugo de Brito Machado Segundo esclarece que podem “[…] dizer respeito a questões substanciais (inexistência da obrigação tributária) ou formais (incompetência da autoridade lançadora, vícios no procedimento ou no processo administrativo etc.)”, sendo que “[…] sua demonstração pode envolver não apenas controvérsia quanto à interpretação de normas e ao significado jurídico de fatos, mas também divergência quanto à própria ocorrência dos fatos sobre os quais se funda a pretensão do autor, com ampla dilação probatória”[4].
Por comportar ampla dilação probatória, a ação de conhecimento, de rito ordinário, é instrumento mais amplo que o mandado de segurança para a discussão da validade do crédito tributário. Na ação anulatória podem ser discutidos os mesmos lançamentos que seriam judicialmente impugnáveis em sede de mandado de segurança, além de outros que demandem dilação probatória, ou que tenham sido formalizados há mais de 120 dias. De qualquer forma, cumpre apontar que, como há a condenação do vencido no pagamento de honorários advocatícios de sucumbência e custas, a ação anulatória pode tornar mais onerosa a discussão judicial do crédito tributário, o que deve ser levado em consideração antes da propositura da demanda.
Ainda, é necessário destacar que a propositura da ação anulatória não tem o condão de suspender a execução fiscal em curso. Para suspender a exigibilidade do crédito tributário cujo lançamento se pretende anular, o autor da ação pode realizar o depósito do seu montante integral ou requerer a concessão de medida liminar ou tutela antecipada, nos termos do artigo 151, incisos II, e V, do Código Tributário Nacional. Neste sentido, como já sumulado pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, e como vem sendo reiterado pela jurisprudência, “[n]ão constitui pressuposto da ação anulatória do débito fiscal o depósito de que cuida o art. 38 da Lei 6.830 de 1980 (Súmula 247).”
Quanto ao prazo para propor a Ação Anulatória, destacamos que o direito do contribuinte postular a anulação de lançamento tributário de ofício prescreve em cinco anos contados da data de notificação daquele em relação a formalização do lançamento, nos termos do artigo 1º do Decreto nº 20.910/1932[5]. De qualquer forma, caso a demanda também tenha como objeto a repetição de eventual indébito tributário, deverá observar o prazo prescricional previsto no artigo 168, inciso I, do Código Tributário Nacional[6].
Evidencia-se assim que mesmo perdido o prazo para opor Embargos à Execução Fiscal, o mérito do lançamento tributário objeto da execução pode ser apreciado por meio de ações autônomas, sem que se possa falar em preclusão ou coisa julgada em favor da Fazenda Pública, havendo preclusão tão somente da via de defesa por meio dos embargos à execução, restando íntegros os direitos do executado e a possibilidade de defesa por outros meios jurídicos.
[1] Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: (..) IV – verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo; V – reconhecer a existência de perempção, de litispendência ou de coisa julgada; VI – verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual; (…) IX – em caso de morte da parte, a ação for considerada intransmissível por disposição legal; e (…) § 3o O juiz conhecerá de ofício da matéria constante dos incisos IV, V, VI e IX, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
[2] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[3] Art. 38 – A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.
[4] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Processo Tributário. 5ª ed, São Paulo: Atlas, 2010, p. 387.
[5] Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.
[6] Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados: I – nas hipótese dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;
O principal impacto da suspensão do artigo 29 da MP n. 927/2020 no âmbito tributário
por Matheus Schwertzer Ziccarelli Rodrigues
No dia 29 de abril, o plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu, liminarmente, dois trechos da Medida Provisória n. 972/2020, responsável por dispor sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19). A decisão foi proferida no julgamento de medida liminar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP.
Entre os artigos cuja eficácia foi suspensa, destacamos o artigo 29, segundo o qual “[o]s casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. O referido dispositivo tinha como objetivo evitar que as empresas fossem responsabilizadas pela transmissão da Covid-19 aos seus empregados, sem que restasse demonstrado um nexo causal entre a atividade ou o ambiente de trabalho e o contágio.
Desta forma, a caracterização da doença como ocupacional dependeria da comprovação de que a empresa não adotou todas as medidas necessárias para manutenção da higidez do posto laboral dos empregados. E tal intenção, pelo menos prima facie, é de todo legítima, uma vez que, por se tratar de uma doença altamente contagiosa e que, na maioria das vezes, não guarda relação com o trabalho, não parece razoável admitir uma imputação automática de responsabilidade às empresas.
Por sua vez, a suspensão do referido artigo pelo STF foi fundamentada principalmente no argumento de que o dispositivo prejudicaria inúmeros trabalhadores de atividades essenciais e de risco que continuariam expostos ao vírus, bem como, imporia aos empregados a produção de provas impossíveis de serem produzidas, para fins de demonstrar a existência de nexo causal entre o contágio e a atividade.
No atual cenário, é certo que não podemos admitir que a suspensão da eficácia do artigo 29 implica reconhecimento automático da Covid-19 como doença ocupacional. Ocorre que, enquanto, antes, só se considerava a Covid-19 como doença ocupacional se comprovado pelo empregado que ele a adquiriu em razão das atividades laborais, atualmente, parece-nos que o ônus probatório foi invertido para o empregador, que deve demonstrar que adotou todas as medidas de segurança, medicina e higiene do trabalho, a fim de conter a contaminação e propagação do coronavírus.
Sem desconsiderar o caráter protetivo ao empregado da referida suspensão pelo STF, é preciso destacar que o reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional implica certos ônus aos empregadores, como a estabilidade por 12 meses do empregado afastado, após seu retorno ao trabalho, manutenção dos depósitos do FGTS no período de inatividade e, em âmbito tributário, a majoração das alíquotas da contribuição previdenciária destinada ao Risco Ambiental do Trabalho (RAT), antigo Seguro Acidente do Trabalho (SAT).
A contribuição previdenciária em comento está disciplinada no artigo 22, inciso II da Lei 8.212/1991, que dispõe sobre o custeio da Seguridade Social. O mencionado artigo coloca como contribuição a cargo das empresas o financiamento dos benefícios de aposentadoria especial e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho.
A contribuição incide sobre o total das remunerações pagas ou creditadas pela empresa, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, no percentual de: 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve; 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio; 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave.
Considerando que o artigo 22, inciso II, da Lei 8.212/1991 carece de regulamentação para sua aplicação, o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048/1999, veio para suprir tal carência, inserindo em seu Anexo V a relação de atividades preponderantes e os correspondentes graus de risco. Diante disto, fixou-se critério objetivo de aferição da alíquota do RAT em função da atividade econômica preponderante na empresa.
Neste cenário, foi promulgada a Lei 10.666/2003, que, em seu artigo 10º, dispôs sobre a possibilidade de redução, em até cinquenta por cento, ou aumento, em até cem por cento, da contribuição do RAT, conforme previsto no regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de frequência, gravidade e custo.
Ato contínuo, por meio do Decreto nº 6.042/2007, o Presidente da República alterou o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto no 3.048/1999, para dispor em seu artigo 202-A sobre a criação do Fator Acidentário de Prevenção – FAP, que passaria a servir de instrumento para aferição do desempenho da empresa em relação à sua respectiva atividade. O FAP é calculado levando em consideração o número de acidentes de trabalho, óbitos, invalidades ou doenças ocupacionais nos estabelecimentos da empresa.
Ainda, merece destaque que o FAP anual reflete a aferição da acidentalidade nas empresas relativa aos dois anos imediatamente anteriores ao processamento (exemplo: o FAP 2020 tem como período-base de cálculo janeiro/2018 a dezembro/2019) e o período de vigência do FAP anual é o ano imediatamente posterior ao ano de processamento (exemplo: o FAP 2020 terá vigência de janeiro a dezembro de 2021).
Deste modo, verificamos que o legislador criou o incentivo fiscal em comento, visando induzir o empregador a investir em segurança e saúde no trabalho, com o intuito de prevenir os acidentes do trabalho, efetivando diversos preceitos constitucionais, como aqueles previstos nos artigos 6º[1] e 23º, inciso II[2], e, principalmente, o artigo 7º, inciso XXII, da Constituição Federal, que estabelece como direito dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Como incentivo à realização da conduta pretendida, o legislador estabeleceu, no consequente da norma indutora, a redução, em até 50% da alíquota incidente sobre a base de cálculo do RAT, bem como estabeleceu a possibilidade de aumento da alíquota em até 100%, conforme o desempenho da empresa perante suas concorrentes (empresas da mesma atividade econômica), em relação aos acidentes de trabalho.
Desta forma, premiam-se os contribuintes que realmente atuam no sentido de auxiliar o Estado na efetivação dos preceitos constitucionais, reduzindo os riscos de trabalho e, por conseguinte, as despesas da Seguridade Social, enquanto acresce-se em até 100% o tributo a ser pago pela empresa que não investe ou, pelo menos, não investe eficazmente na prevenção de acidentes do trabalho.
No atual cenário de pandemia e considerando a decisão proferida pelo STF, caso a empresa não tome os devidos cuidados de higiene e proteção contra o coronavírus e seus empregados sejam acometidos pela doença, isso resultará num Fator Acidentário de Prevenção mais elevado e, por conseguinte, numa majoração significativa da alíquota de contribuição do RAT nos dois anos subsequentes. Ainda, caso ocorram casos de óbito por Covid-19, o FAP será bloqueado automaticamente, ou seja, ainda que a empresa adote medidas de saúde e segurança no trabalho, o seu FAP jamais será menor do que o índice 1,0000.
Desta forma, cabe as empresas reforçar as medidas de segurança e saúde de
seus empregados, adotando todas as medidas necessárias de precaução e higiene,
bem como, fiscalizar individualmente cada caso de Covid-19 no ambiente laboral,
seja para prevenir uma proliferação em massa, seja para demonstrar que tomou
todas as medidas cabíveis para impedir o contágio da doença, evitando, assim,
uma majoração da carga tributária da empresa.
[1] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[2] Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Foi publicada a Lei 13.988/2020, que, além de disciplinar a transação em matéria tributária, introduziu o artigo 19-E à Lei 10.522/02. Referido dispositivo extinguiu o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em caso de empate no julgamento. Segundo prevê o artigo em questão, havendo empate não mais será facultado ao presidente do órgão colegiado votar pela segunda vez para resolver definitivamente a questão.
Muitas têm sido as manifestações favoráveis e contrárias à referida norma, merecendo destaque os artigos anteriormente publicados neste espaço por Hugo de Brito Machado Segundo [1] e Igor Mauler Santiago [2]. Três ADIs foram ajuizadas apontando inconstitucionalidades formais e materiais no referido dispositivo legal.
Quanto às inconstitucionalidades formais, inicialmente alega-se tratar de um “contrabando legislativo”, espécie já rechaçada pelo STF no julgamento das ADIs nº 5127 e nº 5012. Ocorre que as normas atacadas nessas ações padeciam de falta de pertinência grosseira com o conteúdo temático da lei em que estavam insertas. Definitivamente, o disposto no artigo 19-E da Lei 10.522/02 não é uma hipótese de “contrabando legislativo” ou de um “jabuti”, já que a regra por ele veiculada guarda absoluta pertinência temática com a matéria tratada pela Lei 13.988/20, a qual disciplina o crédito tributo tributário em seu sentido amplo, especialmente no que concerne à sua extinção. Trata-se de lei que busca reduzir a litigiosidade e, por certo, a extinção do voto de qualidade é uma das medidas aptas a tal fim, pois extinto o crédito tributário não mais será ajuizada ação para questioná-lo perante o Poder Judiciário, o que, sem dúvidas, ocorre quando a cobrança é mantida na esfera administrativa.
No que diz respeito às inconstitucionalidades formais apontadas, entendemos que o disposto no artigo 28 da Lei 13.988/20 não agrediu o princípio democrático, pois, ainda que de forma abreviada, tramitou no âmbito do Poder Legislativo e, também, sofreu a chancela do Poder Executivo, visto que foi aprovado sem vetos.
No que concerne às alegadas inconstitucionalidades materiais, a extinção do voto de qualidade não agride o interesse público, aliás o agasalha e o enaltece, na medida em que, havendo dúvida séria em relação à cobrança do crédito tributário, tal dúvida se resolverá em favor do contribuinte.
Na linha do que leciona Renato Alessi, há de se distinguir interesse público primário de interesse público secundário, sendo o primeiro aquele que dá guarida às prioridades da sociedade e o segundo, às do Fisco.
Quer parecer que aqueles que apontam a agressão ao interesse público o fazem em relação ao secundário e penso que não seja o mais adequado. O que há de prevalecer é o interesse público primário, qual seja, o da sociedade.
Há ainda de se distinguir o interesse público do interesse privado do poder público. A preocupação com o eventual prejuízo à arrecadação, a par de ser consequencialista, dá guarida aos interesses da Fazenda Pública e não aos da sociedade.
Portanto, a extinção do voto de qualidade é imposição do princípio da moralidade.
A moralidade administrativa é princípio norteador de toda a ação administrativa, sendo defeso ao agente público agir em descompasso com os padrões éticos e de justiça aceitos pela sociedade.
Sob o prisma da moralidade, a satisfação do requisito de legalidade do ato não é suficiente. É necessário ir adiante na investigação da atividade administrativa para verificar se o conjunto de seus elementos realmente sustenta o interesse público ou apenas dá a falsa impressão de que o faz.
O princípio da moralidade, permeado pela ética na conduta administrativa, impõe à Administração Pública a necessidade de se submeter aos ditames legais, observando a pauta de valores morais vigentes no corpo social para consecução do interesse público. O atuar da administração motivado por interesse particular implica violação ao princípio da moralidade.
Segundo ensina Marçal Justen Filho:
“O princípio da moralidade pressupõe a existência e o respeito aos interesses privados, mesmo que egoísticos, dos não exercentes do poder público. A expressão ‘interesse público’ deve ser interpretada em consonância com os princípios norteadores de um Estado de Direito democrático, o que significa o reconhecimento da multiplicidade de interesses e a impossibilidade de eliminar sua contraposição” [3].
Conforme leciona ainda o referido autor:
“O Estado de Direito democrático, tal como aquele consagrado pela CF/88, reconhece que a supremacia do interesse público não significa supressão de interesses privados. Um dos mais graves atentados à moralidade pública consiste no sacrifício prepotente, desnecessário ou desarrazoado de interesse privado. O Estado não existe contra o particular, mas para o particular. (…) O Estado não existe para buscar satisfações similares às que norteiam a vida dos particulares. A tentativa de obter maior vantagem possível é válida e lícita observados os limites do Direito, mas apenas para os sujeitos privados. Não é conduta admissível para o Estado, que somente está legitimado a atuar para realizar o bem comum e a satisfação geral. (…) Não se legitima o ardil sob o argumento de que se destina a abarrotar de recursos os cofres públicos” [4].
O administrador público deve atuar com boa-fé conferindo a cada um o que é seu e satisfazendo não somente a exigências legais, como morais.
Com a extinção do voto de qualidade, havendo dúvida quanto à legalidade do lançamento, em razão de mais de uma interpretação possível sobre a aplicação da lei ao caso concreto, a incerteza deve se resolver em favor do contribuinte, por imposição do princípio da moralidade. Sendo o processo administrativo uma reavaliação realizada pelo Poder Executivo sobre os próprios atos, este só estará autorizado a exigir tributos cujo fato jurídico-tributário seja inequívoco, sob pena de cobrança de tributo com efeito de confisco, o que é terminantemente vedado pelo texto constitucional.
Finalmente, o voto de qualidade é distinto de voto de desempate e, também, do peso dúplice do voto do presidente. É certo que o processo administrativo federal demanda uma profunda reestruturação, no bojo da qual a introdução do voto de desempate atribuído a um julgador imparcial, que não participe do julgamento, seria o desejável.
[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-06/consultor-tributario-lei-1398820-fim-voto-qualidade-carf?imprimir=1>.
[2] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/consultor-tributario-voto-qualidade-contribuintes-vale-tanto-quanto-anterior?imprimir=1>.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade pública e o direito tributário. In: Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 67, p. 73.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade pública e o direito tributário. In: Revista de Direito Tributário. São Paulo, n. 67, p. 73.
Aferição da eficiência que conduz a um sistema ótimo envolve certa dose de subjetividade .
Estamos vivendo um momento ímpar em nossas existências. Procurando sobreviver a uma crise de saúde e econômica. A palavra de ordem é solidariedade. Não é diferente no âmbito da tributação. Não tenho dúvidas de que o Direito Tributário é um eficiente instrumento em prol da solidariedade social. Em um Estado Social, como é o brasileiro, a tributação tem reflexos intensos sobre o bem-estar da comunidade. Neste momento de dificuldade extrema, é preciso enxergar a tributação sob um viés humanitário, buscando soluções que tranquilizem pessoas naturais e jurídicas.
É certo que o Estado vem adotando providências muito positivas em matéria tributária para arrefecer os problemas que estamos vivendo. Nos últimos dias, foram editadas várias medidas que alcançam a coletividade como um todo, entre elas a moratória do FGTS, a do Simples Nacional, a relativa às contribuições sociais e previdenciárias, além da ampliação do prazo para cumprimento de obrigações acessórias e a redução da carga tributária do Imposto de Importação para produtos necessários ao combate da COVID, do Imposto sobre Produtos Industrializados para desinfetantes, álcool e produtos similares, do IOF sobre operações de crédito e das contribuições para o Sistema S.
São medidas importantes e tendentes a mitigar as consequências da pandemia, mas não são o bastante. É certo que tais tributos deverão ser pagos em algum momento. Será que estaremos preparados para tanto quando este momento chegar? De fato, o Estado depende de recursos para fazer frente aos elevados custos com os quais está tendo que arcar, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio e reduzir, ainda que acanhadamente, a carga tributária. A moratória no âmbito federal não basta!
É fato que as escolhas feitas por autoridades fiscais e, também, pelos agentes da iniciativa privada não são fáceis. A arrecadação eficiente neste momento é fundamental para fazer frente aos custos decorrentes da pandemia, mas não se pode deixar de lado o propósito de se estabelecer de um sistema tributário justo. No entanto, o que é justo em um momento em que vigora um Estado de Calamidade Pública? Um Estado fiscalmente justo em um momento pandêmico é o mesmo Estado fiscalmente justo em um momento de normalidade? E ainda, é possível aferir a eficiência do sistema em um estado de crise, valendo-se dos mesmos pressupostos de que nos valemos em um momento de normalidade?
As respostas não são simples nem fáceis, mas estou certa de que justiça e eficiência fiscal não têm o mesmo significado e abrangência hoje que tinham há 60 dias. Em face de tal premissa, surge uma terceira indagação. A neutralidade fiscal, como forma de garantir o equilíbrio econômico e a não afetação dos preços pelas decisões tomadas nas esferas pública e privada, é factível em momentos de crise, como este pelo qual passamos?
É certo que todas estas perguntas podem ser solucionadas a partir da análise da política fiscal que vem sendo adotada e esta foi claramente ajustada para o momento de crise.
É nítido que o Estado, sem renunciar às receitas, postergou o pagamento de tributos para imprimir maior eficiência no auxílio às empresas, fortemente atingidas pela crise; estabeleceu medidas de controle da tributação, como as isenções relativas aos produtos e serviços relacionados ao controle da pandemia; mas deixou de lado a perspectiva redistributiva da tributação, que é um dos vieses da justiça fiscal. Tal circunstância se deve, certamente, a uma mudança provisória de valores.
No momento, o Estado busca a realização da justiça social não por meio da justiça fiscal por meio da progressividade, mas com a adoção de medidas de transferência de renda, como a concessão de subsídios aos trabalhadores informais e a complementação salarial nas hipóteses de redução da jornada de trabalho.
Não acreditamos que a atividade hermenêutica em matéria tributária deva se nortear apenas pelos efeitos econômicos das normas – já que, para as ciências econômicas, o que é relevante é uma arrecadação eficiente –, mas deve ser jurídica e, neste sentido, investigar, além da eficiência, a justiça das normas, ou, ao menos, em que medida sua aplicação desencadeará um estado de justiça e de bem-estar social.
O conceito de justiça não é unívoco nem preciso, podendo ser individual ou geral, mas é certo que muda conforme o momento histórico e as condições sociais, e é essa matriz que deve nortear hoje a atuação do Estado Fiscal.
É fato, no entanto, que o conceito de justiça nas atuais circunstâncias envolve a ideia de equidade, de igualdade de direitos de todos os atores envolvidos na crise, e a justiça está relacionada à ideia de eficiência e de um sistema tributário ótimo, qual seja aquele que, sem deixar de arrecadar, atenderá também às consequências decorrentes da crise econômica, ao drama dos menos favorecidos e à redução de fluxo de caixa do setor empresarial e das sociedades prestadoras de serviços, assim como o dos empresários e prestadores de serviços individuais. No entanto, o que é considerado ótimo hoje, posto que eficiente, não é o mesmo que era assim considerado antes de sermos alcançados pela pandemia.
A aferição da eficiência que conduz a um sistema ótimo envolve certa dose de subjetividade e sempre impõe uma comparação entre dois momentos ou duas situações.
Certamente aferir a eficiência das medidas tributárias adotadas pelo governo como forma de mitigar os efeitos da pandemia é uma tarefa desafiadora, até porque o intervalo de tempo em que tal medida deve ser realizada é curto. De qualquer maneira, é necessário adotar um critério de eficiência, que, segundo penso, deva ser o da utilidade das medidas para a maximização do bem-estar social.
Elas estão sendo úteis para socorrer aos empreendedores? E os trabalhadores? Parece-me que, em certa medida, estão; mas como essa é uma situação excepcional e única no último século, não há como estabelecer uma comparação com outra(s) de mesma natureza e, assim, torna-se difícil concluir qual o seu nível de eficiência e qualidade.
O que me parece certo é que é melhor com elas do que sem elas. Elas, as medidas adotadas, seguramente incrementam o estado de bem-estar social, embora não sejam o bastante, e se assim o são, não são justas também.
BETINA TREIGER GRUPENMACHER – Advogada. Professora de Direito Tributário da UFPR. Doutora pela UFPR. Pós-Doutora pela Universidade de Lisboa e Visiting Scholar pela Universidade de Miami. Conselheira do WIT – Women in Tax Brazil.
Publicado no portal Conjur no dia 27/03/2020
por Betina Treiger Grunpenmacher
Após mais de 20 anos em discussão no Poder Judiciário, a imunidade das entidades assistenciais às contribuições previdenciárias foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, em 23 de fevereiro de 2017, oportunidade em que, por maioria de votos, fixou, nos seguintes termos, a tese relativa ao tema 32 de repercussão geral (RE 566.622): “Os requisitos para o gozo de imunidade hão de estar previstos em lei complementar”.
Dada a similaridade dos temas, na mesma sessão, o STF julgou as ADIs 2.028, 2.036, 2.621 e 2.228, convertidas em ADPFs, e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 4º, 5º e 7º da Lei 9.732/98, que modificaram o artigo 55 da Lei 8.212/91.
Após a publicação do acórdão, a União interpôs embargos de declaração em razão de suposta obscuridade no julgado, alegando não ter ficado claro se os requisitos previstos no artigo 55 da Lei 8.212/91, na forma disposta na redação anterior à Lei 9.732/98, permaneceriam ou não válidos e eficazes. No mesmo recurso, a União criticou a tese fixada, por entender que determinou genericamente que os requisitos para o gozo da imunidade deveriam estar previstos em lei complementar.
Em 18 de dezembro de 2019, os referidos embargos foram julgados, tendo o STF manifestado o entendimento quanto à “(…) constitucionalidade do artigo 55, II, da Lei 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo artigo 5º da Lei 9.429/1996 e pelo artigo 3º da Medida Provisória 2.187-13/2001” e, ainda, conferiu nova redação à tese em questão nos seguintes termos: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas”.
Acreditamos que a “nova” redação dada à tese em nada altera aquela fixada em 23 de fevereiro de 2017, qual seja, a de que as condições para gozo da imunidade devem estar previstas em lei complementar, afinal, a nova redação reafirma que a utilização de tal instrumento normativo é a forma exigível para fixação dos requisitos necessários à fruição da imunidade, aos quais denomina, agora, de contrapartidas.
No entanto há quem entenda que a “nova” tese reconheceu a necessidade de que as entidades assistenciais possuam o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas), previsto no artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91 – para que façam jus à imunidade. Tal exigência é, em tudo e por tudo, um contrassenso, uma vez que não há, de forma expressa, tal previsão no texto da referida tese, e, ainda, porque, nos termos do disposto no artigo 146, inciso II[1], da Constituição Federal, cabe à lei complementar regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, entre as quais se inserem as imunidades.
Sendo certo que a norma estampada no artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição Federal, veicula uma imunidade, deve ser regulada exclusivamente por lei complementar, nunca por lei ordinária, com é o caso da Lei 8.212/91 e das leis que a alteraram.
Assim, não havendo lei complementar específica que regule a matéria, aplica-se a regra geral, qual seja, a disposta no artigo 14[2] do Código Tributário Nacional com a redação que lhe deu a LC 104/2001, que prevê apenas três requisitos para gozo da referida imunidade: não distribuição de lucros, aplicar integralmente no país os recursos, manutenção de escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de exatidão.
Destaque-se ainda que a Lei 8.212/91, e também as que a alteraram, são leis ordinárias e ainda que seja reconhecida a sua constitucionalidade, as regras por elas veiculadas, entre as quais está a previsão da obtenção do Cebas (artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91), se aplicam apenas ao reconhecimento de isenção, nunca de imunidade.
Com o devido respeito aos que entendem que a “nova” tese impõe a obtenção do Cebas para fruição da imunidade em questão, pensamos que a referida tese apenas reafirma que os requisitos para fruição da imunidade devem estar previstos em Lei Complementar, o que está em harmonia com o disposto no artigo 146, inciso II da Constituição Federal.
A conclusão em questão deve-se ao fato de que alguns dos Ministros registaram em seus votos a possibilidade de a lei ordinária impor requisitos para fruição da imunidade. A ministra Rosa Weber inaugurou a divergência em relação ao voto do ministro Marco Aurélio, que rejeitou os embargos da União, e o fez nos seguintes termos:
Acolher os embargos de declaração para, sanando os vícios identificados, i) assentar a constitucionalidade do artigo 55, II, da Lei 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo artigo 5º da Lei 9.429/1996 e pelo artigo 3º da Medida Provisória 2.187-13/2001; e ii) a fim de evitar ambiguidades, conferir à tese relativa ao tema 32 da repercussão geral a seguinte formulação: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas.
O ministro Alexandre de Moraes, após relembrar que houve uma aparente contradição entre os julgados do mesmo tema (RE e ADIs), afirmou que:
(…) Já adiantando que acompanho integralmente sua excelência (ministra Rosa Weber) porque o resultado da votação realmente me parece ter sido no sentido proposto pelo ministro Teori, que era o relator original. Ou seja, a possibilidade da lei ordinária regulamentar questões meramente procedimentais, relacionadas a certificação, fiscalização e controle das entidades beneficentes de assistência social, tudo com o escopo de verificar o efetivo cumprimento dos objetivos expostos no artigo 203. Em outras palavras, em relação a certificação, fiscalização e controle não há reserva legal da lei complementar, não há a necessidade de lei complementar. Com essas rápidas considerações, acompanho integralmente em ambos os Embargos o voto da ministra Rosa Weber.
Também o ministro Roberto Barroso afirmou:
Também eu estou votando na linha da ministra Rosa Weber para reconhecer a aparente contradição, considerar constitucional o Cebas, e reafirmar (porque eu não mudei de opinião) o entendimento de que os aspectos procedimentais das imunidades podem estar previstos em leis ordinárias, enquanto que os que estabelecem condições para a fruição material da imunidade é que devem estar previstos em lei complementar. Portanto eu estou igualmente dando provimento aos embargos em todos os feitos, na linha proposta pela ministra Rosa Weber, apenas deixando claro que uma coisa é procedimento e outra é exigência material, e nessa linha eu considero que o Cebas é válido, e, portanto, estou acompanhando o voto da ministra Rosa Weber.
Ainda o ministro Ricardo Lewandowski registrou: “(…) Verifico que faço uma distinção entre aquilo que diz respeito à imunidade e o que trata de aspectos procedimentais, nesse aspecto eu também entendo que basta lei ordinária.”
Ousamos discordar dos ilustres ministros porque imunidade é imunidade e qualquer que seja a limitação imposta à sua fruição só poderá ser veiculada por meio de lei complementar.
Ainda, embora o registro feito por eles quanto à possibilidade de a lei ordinária estabelecer “requisitos procedimentais” para concessão da referida imunidade, não foi este o entendimento que restou refletido na tese, que manteve a exigência de lei complementar para tal propósito. A ministra Rosa Weber em seu voto apenas reconhece a constitucionalidade do artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91, sem referir à imunidade em questão.
Com efeito, ao tratar do artigo 14 do CTN, Paulo de Barros Carvalho afirma que:
São as únicas exigências para o enquadramento no preceito imunizante, não podendo o legislador ou mesmo o intérprete, por meio de simples lei ordinária, modificá-los. Desse modo, somente configuram requisitos imprescindíveis para reconhecimento da imunidade tributária das instituições educacionais: (a) inexistência de finalidade lucrativa, comprovada pela não-distribuição de lucros; (b) integral aplicação de recursos no País, na manutenção dos objetivos institucionais; e (c) escrituração das receitas e despesas.[3]
Parece-nos, então, que o entendimento dos ministros é consequencialista e, possivelmente, se deve à preocupação de que a dispensa do Cebas poderia ter como consequência fraudes tendentes à redução da carga tributária.
Definitivamente não se pode atribuir tratamento igualitário a bons e maus contribuintes, especialmente quando para tanto se sacrificam normas constitucionais.
A imunidade conferida às entidades assistenciais, em relação às contribuições previdenciárias, busca suprir a ineficiência do poder público na área assistencial. Não se pode mitigar um direito constitucional com status de cláusula pétrea para prevenir um agir em desconformidade com a lei por parte de tais entidades. Até porque, a concessão do Cebas é fruto, a depender da natureza da instituição, de uma decisão política – do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde, ou do Ministério do Desenvolvimento Social –, à qual não se pode submeter uma garantia constitucional.
Não por outro motivo que o artigo 14 do CTN em seu parágrafo 1º prevê que a imunidade poderá ser suspensa caso a entidade deixe de atender aos requisitos previstos nos incisos I, II e III.
Em tal entendimento o STF se antecipa à fraude, impondo a necessidade de observância de um requisito que não está previsto em Lei Complementar nem mesmo na Constituição Federal.
Procedimental ou não qualquer que seja a limitação imposta a uma imunidade constitucional, é indiscutível que esta somente poderá ser imposta por meio de Lei Complementar.
[1] Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
(…)
[2] Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação dada pela Lcp nº 104, de 2001)
II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;
III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
§ 1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do artigo 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Imunidades Condicionadas e Suspensão de Imunidades: Análise dos requisitos do artigo 14 do CTN impostos às instituições de educação sem fins lucrativos. Revista de Direito Tributário n.º 99, p. 14.
Publicado no portal Conjur no dia 06/01/2020
por Betina Treiger Grunpenmacher
É fato que ostentamos elevados e indesejáveis índices de litigiosidade em matéria tributária, tanto em âmbito administrativo como em âmbito judicial. A lentidão na tramitação dos processos, além de retardar a realização da receita tributária, mantém o contribuinte em “estado de inadimplência”, ainda que em alguns casos a exigibilidade do crédito esteja suspensa. Tal circunstância, a par de comprometer o financiamento das instituições democráticas, compromete também o desenvolvimento da atividade econômica.
A redução da referida litigiosidade perpassa, necessariamente, pela adoção de medidas alternativas de solução de conflitos, entre as quais se inserem a transação, a arbitragem e o negócio jurídico processual.
Importante ressaltar que em matéria de transação os Municípios estão muito à frente de Estados e da União. É significativamente grande o número de municipalidades que, no âmbito de suas competências, instituíram leis de transação tributária cujos resultados são muito positivos. Quanto aos Estados, a adoção da transação como forma extintiva do crédito tributário é ainda muito acanhada e a União “reluta” há aproximadamente vinte anos em instituí-la.
Fato é que não apenas a transação, mas todos os demais instrumentos de solução de conflitos em matéria tributária, em especial a arbitragem, sempre foram obstados em razão da suposta agressão à indisponibilidade dos bens públicos e à lei de responsabilidade fiscal, como também em razão da presunção de renúncia de receita que gerariam e, especificamente em relação à arbitragem, do fato de que a jurisdição é monopólio do Estado.
Tais óbices foram, em certa medida, superados em âmbito federal com a edição (i) da Portaria PGFN nº 742/2018 que instituiu o Negócio Jurídico Processual (“NPJ”); (ii) do Projeto de Lei nº 4.257/2019, de autoria do senador Antonio Anastasia, que busca implementar o instituto da arbitragem em matéria tributária; e (iii) da Medida Provisória (“MP”) nº 899/2019 que instituiu a transação para débitos federais, além da Portaria PGFN nº 11.956/2019 que a regulamentou.
Quanto ao NPJ, o Código de Processo Civil (“CPC”) introduziu, no artigo 190, a possibilidade negociação pelas partes litigantes em relação a direitos que admitem auto composição, facultando ao juiz controlar a legalidade e o equilíbrio das avenças estabelecidas. Sendo este o pressuposto para se celebrar o NPJ questiona-se: as desavenças tributárias admitem auto composição de maneira que seria possível celebrar negócio jurídico processual?
O Fórum Permanente de Processualistas Civis ao analisar a questão acima mencionada, editou o Enunciado 2561 em que reconhece que a Fazenda Pública pode celebrar negócios jurídicos processuais, porque o direito tributário permite auto composição. Esta também é a posição da PGFN, refletida na Portaria nº 742/2018, a qual instituiu o NPJ como meio válido para resolução de litígios no âmbito das execuções fiscais.
Nesse sentido, em face da possibilidade da adoção do NPJ em execuções fiscais, poderão ser negociadas questões como o calendário processual, a amortização da dívida e condições relativas às garantias. Portanto, penso que, embora o NPJ seja uma forma de transação, não resulta na extinção do crédito tributário.
São pressupostos para a celebração de negócio jurídico processual o interesse da Fazenda Nacional, a confissão do sujeito passivo no caso de amortização da dívida, a oferta de garantias e a obrigação de que o devedor informe a Fazenda Nacional sobre qualquer alienação de bens que venha a realizar durante o processo.
Acredito que a amortização da dívida e a oferta de garantias não são essencialmente hipóteses de negociação quanto a atos processuais, senão quanto ao crédito em si, o que insere tal discussão no campo da Transação, e não do NPJ.
Conforme expus, embora o NPJ seja uma forma de transação, este instrumento é capaz de alcançar apenas ajustes relativos aos atos processuais, e, portanto, não acarreta a extinção do crédito tributário.
Ainda, destaco que o negócio jurídico processual pode ser rescindido em caso de descumprimento de qualquer uma de suas cláusulas, do inadimplemento de duas parcelas do plano de amortização, da falência do sujeito passivo, do esvaziamento patrimonial e da inaptidão da inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (“CNPJ”).
Alguns meses após a instituição do NPJ, sobreveio a MP nº 899/2019, a qual instituiu a transação como forma de extinção do crédito tributário, o que ocorre 53 anos após a edição do CTN, que já a contemplava em seu artigo 171. Conforme estabelece referido dispositivo, a lei poderá prever que, mediante concessões mútuas, as partes podem transigir para por fim a litígios e, embora haja controvérsias, penso que os litígios referidos no mencionado dispositivo podem ser judiciais e administrativos.
A transação, conforme enuncia sua justificativa, foi concebida para: (i) favorecer e auxiliar contribuintes com problemas econômicos transitórios; (ii) solucionar controvérsias que envolvam matérias relevantes e cujo objeto sejam controvérsias disseminadas; e, ainda, (iii) solucionar questões que envolvam débitos de difícil recuperação, em relação aos quais poderão ser concedidos descontos.
Sendo uma forma de extinção do crédito tributário, a transação está vinculada a existência de litígios, o que nos permite concluir que o CTN não autorizou a transação em relação a créditos tributários não discutidos em processos administrativos ou judiciais.
Neste aspecto, embora a MP nº 899/2019 enuncie por meio de seu artigo primeiro que a transação tem por objetivo resolver litígios, a Portaria PGFN nº 11.956/2019 que a regulamenta estabelece a possibilidade de ajuste em relação à débitos inscritos em dívida ativa, discutidos ou não em processos administrativos e judiciais. Ou seja, não se trata de genuína norma de transação, já que tais disposições se distanciam do disposto no artigo 171 do CTN.
Ainda, a MP e a Portaria em questão, vedam a transação quanto ao valor do crédito principal, de débitos de FGTS, de débitos relativos ao simples nacional e de multas qualificadas, e o artigo 14 da referida Portaria ressalva a realização de NPJ nessas circunstâncias. Concluo, portanto, que em tais hipóteses é vedada a transação mas não o negócio jurídico processual.
São três as modalidades de transação: (i) por adesão para débitos de até 15 milhões; (ii) individual proposta pelo contribuinte; e (iii) a individual proposta pela PGFN, relativa a débitos de mais de 15 milhões.
Em relação à transação por adesão, o primeiro edital foi publicado em dezembro de 2019 e autoriza sua utilização para débitos de até 15 milhões de reais. Trata-se de providência muito similar aos parcelamentos incentivados, já que não há uma participação efetiva do contribuinte quanto aos termos da transação, o qual simplesmente adere às condições impostas pela Fazenda Nacional.
São quatro as categorias de contribuintes que podem aderir à transação por adesão nessa primeira oportunidade: (a) contribuintes com CNPJs inativos e sem suspensão de exigibilidade; (b)contribuintes com suspensão de exigibilidade há mais de dez anos; (c) contribuintes mortos; e (iv) contribuintes com inscrição em dívida ativa há mais de 10 anos.
Os benefícios previstos e que poderão ser concedidos são: (i) descontos de 50% em relação aos acréscimos legais, os quais poderão chegar até 70% para pessoas físicas, micro empresas e empresas de pequeno porte ou empresa em recuperação judicial; (ii) parcelamento em até 84 meses ou até 100 meses, também para pessoas naturais, microempresas e empresas de pequeno porte, assim como empresas em recuperação judicial; (iii) flexibilização das garantias; e (iv) a possiblidade de utilização de precatórios próprios ou de terceiros.
Conforme se verifica deste breve relato, a transação por adesão não se insere efetivamente no campo da transação, embora seja providência muito positiva.
Creio que as transações por natureza são as individuais, que decorrem de proposta da Fazenda ou do contribuinte em que há pró atividade efetiva de ambas as partes quanto às cláusulas da avença.
Há ainda uma regra na MP 899/2019 que merece especial destaque, qual seja, a possibilidade de a Fazenda Nacional pedir a falência do sujeito passivo que descumprir a transação, o que é, em tudo e por tudo, questionável, porque além de a Fazenda Pública não participar do processo falimentar, a disposição contraria jurisprudência consolidada dos tribunais.
Importante destacar que, por instituir uma espécie de transação tributária, em alguns aspectos a Portaria PGFN nº 742/2018 que criou o NPJ poderá conflitar com regras veiculadas pela MP nº 899/2018. É tão factível a identidade entre as referidas medidas que a Portaria PGFN nº 11.956/2019 revogou vários dispositivos da Portaria PGFN nº 742/20, que criou o NPJ, ou seja, também a PGFN reconhece que são instits análogos e que suas disposições devem ser harmônicas e compatíveis.
É certo que todas as providências aqui referidas contém aspectos a serem amadurecidos e ajustados, mas não podemos deixar de registrar que representam importantes avanços que favorecem o desenvolvimento nacional e atendem às recomendações da OCDE no sentido de que sejam criadas soluções para reduzir a litigiosidade tributária e estimular o cumprimento da respectiva legislação.
1 256. (art. 190) A Fazenda Pública pode celebrar negócio jurídico processual. (Grupo: Negócios Processuais)
Primeiro texto da nova coluna do JOTA analisa o cenário para a reforma do setor tributário
Artigo JOTA, 20 de setembro de 2019, 07h58
Tramitam no Congresso Nacional algumas propostas de reforma tributária, entre elas a PEC 110/2019, conhecida como “PEC do Senado”, e a PEC 45/2019, conhecida como “PEC da Câmara”, que são consideradas as mais viáveis.
A primeira reproduz a emenda substitutiva apresentada pelo então Deputado Luiz. C. Hauly (PEC 293/2004) e a segunda é fruto de estudos do Centro de Cidadania Fiscal, que foram encampados pelo Deputado Baleia Rossi.
Além das PECs 110 e 45, o Governo Federal anunciou que apresentará o seu próprio projeto de reforma tributária, que, segundo noticia-se, instituirá uma contribuição federal sobre bens e serviços, que unificará o PIS, a COFINS, o IPI e o IOF e estabelecerá a desoneração parcial da folha de salários.
Os Projetos da Câmara e do Senado, em sua essência, não são muito distintos, ambos apresentam como principal providência a simplificação do Sistema Tributário e a unificação de tributos, com a criação do Imposto sobre Bens e Serviços-IBS, além de um imposto seletivo.
Em face de tal cenário, o que se questiona é, se, de fato, precisamos de uma reforma constitucional e se as propostas em questão agridem ou não a Constituição Federal.
Na esteira da lição do mestre alemão Otto Bachof, as normas que decorrem do exercício do poder constituinte derivado reformador podem ser inconstitucionais, e, para muitos, este é o caso das PECs 110 e 45, cujos textos já são conhecidos.
A despeito de termos um Sistema Constitucional bem arquitetado, harmônico e consentâneo com os fundamentos intrínsecos de um Estado Democrático e de Direito, ninguém ignora que a sua aplicação sempre foi severamente distorcida e distanciada do modelo idealizado pelo constituinte originário, o que incrementou a sua complexidade, injustiça e onerosidade.
Pensamos que a reforma ideal seria a “reforma cultural”, aquela em que o Estado tivesse mais apego aos ideais democráticos e às suas funções constitucionais e republicanas, ao legislar, fiscalizar e arrecadar tributos, e o contribuinte, de sua parte, maior consciência de cidadania fiscal, mas, certamente, esta “reforma” não ocorreria em menos de 50 anos, como proposto pela PEC 45, e, portanto, estamos convictos de que mudanças formais são necessárias.
É certo que as alterações poderiam ocorrer em nível infraconstitucional, já que os problemas, que geram as referidas complexidade, onerosidade e injustiça fiscal, concentram-se no ICMS, nas Contribuições Especiais, no IRPJ e no IRPF. [ 1 ]
Fato é que, a reforma do Sistema Constitucional Tributário permanece em pauta e em rota de aprovação pelo Congresso Nacional e, conforme indicam as projeções técnicas, as mudanças, se implementadas, lamentavelmente, não mitigarão a onerosidade da tributação, pelo contrário, haverá um aumento da carga tributária.
No que concerne à preservação das competências tributárias, a despeito dos plausíveis argumentos que vêm sendo opostos em relação à questão federativa, o modelo proposto pela PEC 45, que estabelece a fixação, pelas pessoas políticas, das alíquotas dos impostos de sua competência, além da instituição do IBS por lei complementar – que é lei nacional e não lei federal –, protege a competência tributária e a autonomia financeira dos entes federativos.
No que concerne à função regulatória e extrafiscal da tributação, a PEC 110 estabelece que o IBS não poderá ser objeto de desonerações, à exceção das relativas à medicamentos, alimentos, transporte público, saneamento básico, ensino em todos os níveis, e bens do ativo imobilizado, cuja disciplina deverá ocorrer por lei complementar. Já a PEC 45, veda a concessão de todo e qualquer benefício fiscal relativo ao referido imposto.
Quanto à proposta a ser enviada pelo Governo Federal, não se conhece ainda o seu texto, mas segundo tem sido antecipado pela equipe econômica, será eliminada a possibilidade de abatimento das despesas com saúde.
Não discordamos de que as desonerações tributárias podem ser nocivas à arrecadação e à justiça fiscal, na medida em que transferem o ônus financeiro para contribuintes não alcançados por elas, mas incentivos e benefícios fiscais são necessários para a promoção do desenvolvimento econômico e para a eliminação das desigualdades regionais. As desonerações são, assim, necessárias, desde que sejam provisórias e os seus resultados sejam aferidos em avaliações periódicas. Quanto aos benefícios fiscais que preservam a dignidade da pessoa humana, não são “favores”, ao contrário do que sugerem os idealizadores da PEC 45, mas a materialização de direitos e garantias fundamentais e assim sua vedação seria seguramente inconstitucional.
Ainda a tributação permanecerá fortemente concentrada no consumo, e o que é pior, será eliminado o princípio da seletividade como regra geral – o imposto seletivo não supre a observância da seletividade – o que demonstra que a prioridade dos relatores e também a do Governo não é a promoção da justiça social por meio da justiça fiscal.
Acreditamos que a instituição do imposto negativo contemplado nas PECs 110 e 45 – cuja implementação ocorrerá com a devolução de tributos incidentes sobre o consumo para famílias de baixa renda (PEC 110) ou com mecanismos de transferência de renda (PEC 45) – isoladamente não tem aptidão para a realização da justiça fiscal, pois é medida atrelada à disponibilidade orçamentária e, portanto, às decisões políticas dos gestores públicos.
Ninguém ignora que ostentamos elevados e inadmissíveis índices de pobreza e miserabilidade e, assim, é intolerável que os contribuintes que integram essas classes sociais permaneçam reféns de decisões equivocadas e de um sistema orçamentário ineficiente.
Uma coisa é certa, as propostas precisam ser aperfeiçoadas.
Não podemos, por exemplo, perder a oportunidade de resolver as questões relativas à tributação dos intangíveis, inserindo claramente as materialidades relativas às novas tecnologias no rol de competências impositivas, de forma que se incremente o nível de segurança jurídica dos respectivos contribuintes.
De todas as propostas de reforma constitucional surgidas nos últimos 30 anos esta, seguramente, é a que tem sido considerada com maior seriedade.
A recente constituição de Conselho Consultivo, que será formado por membro da RFB, por economistas e por juristas, certamente auxiliará no aperfeiçoamento dos textos e, consequentemente, resultará na reforma tributária que o Brasil precisa, qual seja aquela que, além de incrementar o desenvolvimento econômico e a empregabilidade, implemente uma tributação justa e promotora da justiça social, reduzindo a pobreza e gerando igualdade de oportunidades, por que, definitivamente, o Sistema Tributário pode ser um poderoso instrumento de redução de desigualdades sociais.
É, portanto, premente que sejam realizados os ajustes necessários nos projetos de reforma tributária, porque a sociedade clama por ela.
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1 Sobre a alteração do IR já nos manifestamos
anteriormente. https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/um-roteiro-para-obter-a-justica-tributaria-2jhwt5nrw92n3hibpn3jpz0hg/
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Betina Treiger Grupenmacher é advogada, professora associada de Direito Tributário da UFPR, pós-doutora pela Universidade de Lisboa, doutora pela UFPR e visiting scholar pela Universidade de Miami.
Publicado no portal Conjur no dia 25/08/2019
por Betina Treiger Grunpenmacher
Em março de 2017, ao julgar o RE paradigma de nº 574.706, o plenário do STF fixou a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da Cofins.”
Em razão do possível impacto negativo nos cofres públicos, a PGFN – embora há muito tempo o risco de perda já esteja contingenciado na LDO [1]– opôs embargos de declaração com triplo propósito; (a) que a decisão alcance apenas os fatos geradores ocorridos após o advento da a Lei nº 12.973/2014 (b) a modulação dos efeitos da decisão, buscando sua eficácia prospectiva, (c) que a decisão se aplique apenas em relação ao ICMS efetivamente recolhido e não em relação ao destacado no documento fiscal.
Desde então, a referida decisão vem sendo objeto de novos embates entre fisco e contribuinte, pois, embora os embargos de declaração não suspendam os seus efeitos – e, consequentemente, se transitadas em julgado as decisões prolatadas nas ações individuais, a tese é imediatamente aplicável – a Fazenda pública tem criado incontáveis óbices ao seu imediato cumprimento.
É certo que a demora de solução definitiva, quanto à uma matéria que tramita há décadas perante o Poder Judiciário, apenas intensifica o nível de insegurança jurídica dos contribuintes. Tal insegurança decorre, entre outros motivos, da postura da administração fazendária, que está obstando as compensações, invocando como fundamento para tanto a Solução de Consulta Interna COSIT nº 13/2018.
A despeito dos vícios de forma que invalidam a referida Solução de Consulta, já reconhecidos em várias decisões judiciais, a Receita Federal está notificando contribuintes que estão realizando compensações respaldados, em regra, em decisões individuais transitadas em julgado, para que, em 20 dias, informem qual foi o método utilizado para a compensação e o fundamento jurídico que lhes assegura a exclusão do ICMS da base de cálculo das referidas contribuições, sob pena de, não o fazendo, estarem sujeitos à aplicação das penalidades previstas no art. 10 da IN nº 1.252/2012.
Ainda nesse contexto, embora centenas de ações estejam transitando em julgado, dezenas de recursos têm chegado ao STJ, em sua maior parte oriundos do TRF da 4ª Região, em razão do entendimento deste Tribunal de que os efeitos da tese fixada estão limitados até 31/12/2014. Trata-se de entendimento equivocado, o que foi, inclusive, reconhecido liminarmente pelo Min. Luís Roberto Barroso na Reclamação nº 32686/SC.
Em face de tais recursos, distribuídos perante o STJ, a PGFN oficiou à 1ª Seção pleiteando que o tema seja afetado como repetitivo. Diante de tal pedido, o Min. Paulo de Tarso Sanseverino, que preside a comissão gestora de precedentes, em parecer preliminar, destacou quatro recursos para serem julgados como repetitivos. No entanto, quem decidirá finalmente pela afetação ou não do tema, será o plenário virtual da 1ª Seção, a partir da indicação do relator dos processos.
A possibilidade de o STJ reapreciar matéria já julgada pelo STF é, definitivamente, um equívoco. É fato que qualquer que seja a decisão do STJ ela não prevalecerá sobre o que for definido afinal pelo STF.
Quanto à pretensão fazendária de mitigar os efeitos e a abrangência da decisão que gerou a fixação da tese relativa ao Tema 69, é induvidoso que o ICMS a ser deduzido da base de cálculo das contribuições é o destacado e não apenas o saldo devedor resultante da não-cumulatividade.
Entre tantos outros trechos do acórdão proferido no RE nº 574.706, destacamos parte do voto da Min. Carmem Lúcia que que deixa claro qual a parcela de ICMS que há de ser considerada:
Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem todo o montante do ICMS seja imediatamente recolhido pelo contribuinte posicionado no meio da cadeia (distribuidor e comerciante), ou seja, parte do valor do ICMS destacado na ‘fatura’ é aproveitado pelo contribuinte para compensar com o montante do ICMS gerado na operação anterior, em algum momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele será recolhido e não constitui receita do contribuinte, logo, ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições. […]. Toda essa digressão sobre a forma de apuração do ICMS devido pelo contribuinte demonstra que o regime da não cumulatividade impõe concluir, embora se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, todo ele, não se inclui na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal, pelo que não pode ele compor a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins. […]. Destacamos.
Fato é que o contribuinte adimplente suportou por décadas tributação indevida e, finalmente, quando foi reconhecida a inconstitucionalidade da cobrança, em recurso paradigma, cujo pedido é a autorização para a dedução da parcela do ICMS, destacada nas notas fiscais, da base de cálculo do PIS e da Cofins, a Fazenda Pública lança mão de vários expedientes buscando postergar e afinal evitar o seu cumprimento, o que, como era de se esperar, desencadeou novas e indesejáveis batalhas entre ambos.
Não bastasse a peleja para fazer valer judicialmente o seu direito, com o propósito de que seja deferida a compensação com débitos futuros das contribuições ao PIS e da Cofins, pagas indevidamente, considerando-se para tal fim o ICMS destacado no documento fiscal e, ainda, o esforço hercúleo para afastar a aplicação da Solução de Consulta Interna Cosit nº 13/2018, o contribuinte também está sujeito a uma possível modulação prospectiva dos efeitos da decisão paradigma.
Não será, certamente, a primeira vez que tal modulação ocorrerá em prejuízo do contribuinte. Não podemos, no entanto, deixar de manifestar nosso inconformismo com essa possibilidade, especialmente no que concerne àqueles que buscaram a tutela judicial para reconhecimento da inconstitucionalidade da cobrança, embora, ressalvamos que todos aqueles que pagaram indevidamente o tributo têm direito incondicional ao ressarcimento, ainda que não tenham ajuizado ação com tal propósito. Admitir o contrário seria incentivar ainda mais a litigiosidade que abarrota o Poder Judiciário.
A par de garantir o direito de propriedade, que integra o catálogo de direitos e garantias individuais, constante no art. 5º do texto constitucional, a Carta da República também assegura que a cobrança de tributos não gere efeitos confiscatórios.
Ora, se as contribuições ao PIS e a Cofins foram cobradas indevidamente, em valor superior àquele autorizado pelo texto constitucional, impõe-se a sua restituição sem condições ou limites temporais. Eventual modulação representará certamente agressão inadmissível ao direito de propriedade e à vedação da cobrança de tributos com efeito de confisco.
A fixação de lapso temporal diferenciado em relação a determinados julgados, com o propósito de preservar direitos e garantias individuais, foi introduzida no ordenamento jurídico pela Lei nº 9.868/99 que, no art. 27, prevê a possibilidade de o STF, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os seus efeitos ou a sua eficácia para momento posterior ao seu trânsito em julgado ou outro que venha a ser fixado.
A despeito de a positivação da modulação de efeitos das decisões judiciais ter ocorrido apenas em 1999, o STF já vinha reconhecendo até então, em sede de controle difuso de constitucionalidade, efeitos prospectivos às suas decisões.
A referida autorização legal desencadeou a fixação de diferentes termos a quo em relação às eficácias das decisões do STF, tais como, a data da publicação da ata de julgamento e a data do julgamento, entre outras que são definidas segundo a peculiaridade de cada caso.
Não há, objetivamente, uma regra quanto ao termo a quo para a produção de efeitos das decisões do STF. Considerada individualmente cada uma das situações examinadas, e a depender da dimensão do prejuízo e da sua potencialidade de dano, é fixada a data para produção dos respectivos efeitos.
O que preocupa no Brasil é a proliferação de providências que estimulam o mal pagador de tributos. Uma decisão com efeitos prospectivos por redundar em confisco e em enriquecimento sem causa do Estado, além de estimular a inadimplência e o descumprimento da legislação tributária. Embora reprovável, não surpreende que os contribuintes deixem de pagar tributos de constitucionalidade duvidosa, em face da possibilidade de que os efeitos da decisão que conclua pela sua inconstitucionalidade sejam modulados, de forma que reste impedida a recuperação do que foi pago indebitamente.
O prejuízo orçamentário decorrente da devolução dos valores cobrados indevidamente não é, certamente, hipótese de excepcional interesse social, a justificar a modulação dos efeitos de qualquer que seja a decisão judicial.
O que é de “interesse social” é que o Estado não extrapole suas prerrogativas e respeite sempre e incondicionalmente os direitos e garantias individuais. Assim, espera-se que, derradeiramente, os efeitos da decisão paradigma, prolatada no RE nº 574.706, não sejam modulados e que afinal reste esclarecido que o ICMS a ser abatido da base de cálculo do PIS e da Cofins é o destacado. Esta é a única solução que prestigia os valores republicanos como a segurança jurídica, a moralidade administrativa e o direito de propriedade.
[1]Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/ldo/2008/tramitacao/redacao-final/lei%2011.514-anexos.pdf. Acesso em: 22/08/2019
[1]Disponível em: https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/ldo/2008/tramitacao/redacao-final/lei%2011.514-anexos.pdf. Acesso em :22/08/2019
Publicado no portal Conjur no dia 29/06/2019
por Betina Treiger Grunpenmacher
Este texto é resultado de frutíferas discussões ocorridas em seminário promovido pelo Centro Acadêmico Hugo Simas da Universidade Federal do Paraná, onde leciono, e em Talk Show organizado pela CESA-PR, do qual participaram também os Professores Egon Bockman Moreira e Rodrigo Xavier Leonardo. Ambos os eventos versaram sobre a MP 881/2019, conhecida como “Medida Provisória da Liberdade de Atividade Econômica”, que, segundo estabelece o caput do seu artigo 1º, buscou introduzir declaração de direitos inerentes ao livre exercício da atividade econômica, ao assegurar a livre iniciativa e os direitos dela decorrentes.
Trata-se de providência de índole legislativa que busca conferir maior efetividade ao princípio constitucional inserto no artigo 170 da Constituição Federal. Embora não se possa questionar seu mérito e utilidade, diante do seu propósito de incremento do desenvolvimento econômico, pensamos que a referida norma é de todo despicienda pois o princípio da liberdade da atividade econômica, assim como os demais princípios constitucionais, tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, e, portanto, dispensa lei integrativa.
Aliás, a edição de normas tendentes a conferir eficácia a princípios constitucionais é, lamentavelmente, usual no Brasil. São incontáveis as leis e normas infra legais cujo propósito é fazer valer tais princípios. Pensamos que a reprodução em textos normativos de regras e princípios constitucionais, dotados de eficácia plena e aplicabilidade imediata, é absolutamente reprovável pois, a par de impor elevados custos à maquina estatal, é elemento de desvalorização do texto constitucional.
No que concerne à liberdade de atividade econômica, a única norma constitucional que depende de integração por lei é a que prevê o abuso do poder econômico, com o objetivo da dominação dos mercados, eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros, conforme disposto no artigo 173, §4º da Constituição Federal.
De qualquer forma, a despeito da questionável necessidade da referida MP, analisaremos brevemente a sua aplicação ao direito tributário.
O artigo 1º, § 1º prevê que a sua interpretação e aplicação alcança apenas o direito civil, o direito empresarial, o direito econômico, o direito urbanístico e o direito do trabalho.
O § 2º do mesmo artigo ressalva, no entanto, a sua aplicação ao direito tributário, à exceção da possibilidade de arquivamento de documentos fiscais microfilmados ou digitalizados, desde que observada a técnica adequada a ser estabelecida em regulamentação.
Na realidade, tal previsão é mera reprodução do disposto na Lei nº 12.682/2012 – a “Lei da Digitalização”–, que autoriza a destruição de documentos físicos após a sua digitalização, desde que comprovada a integridade do documento original e a autenticação por certificação digital emitida pela infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras-ICP. Tal lei também permite a eliminação do documento digital após o transcurso dos prazos decadencial e prescricional.
Cremos que não andou bem o legislador ao afastar a aplicação da MP do direito tributário, porquanto nenhum fator pode restringir de forma mais severa a liberdade de atividade econômica do que a sujeição ao pagamento de tributos. Na dicção de John Marshall, juiz da Suprema Corte dos EUA, no caso Mc Culloch v. Maryland, o “poder de tributar equivale ao poder de destruir”, ou seja, assim como pode incentivar fortemente a atividade econômica, a tributação pode igualmente aniquilá-la.
Ainda, o artigo 3º, inciso III da MP 881/2019 veda que as autoridades imponham restrições à livre fixação de preços de produtos e serviços, exceto quando o particular pretender reduzir ou postergar o pagamento de tributos, ou ainda remeter lucros em forma de custos para o exterior (artigo 3º, §4º, inciso I).
Tal previsão harmoniza-se com o princípio da neutralidade fiscal, que proíbe que a cobrança de tributos promova distorções de preços e seja motivo para alocação de investimentos. Para neutralizar e corrigir tais situações, a Constituição Federal contempla o disposto no artigo 146-A, incluído pela E/C 42/2003, que autoriza a União a editar Lei Complementar para estabelecer critérios especiais de tributação, visando prevenir desequilíbrios concorrenciais.
Observe-se que embora o legislador tenha ressalvado a aplicação da MP em relação ao direito tributário, contemplou “cá e lá” regras a ele aplicáveis. A previsão relativa à fixação de preços, por exemplo, deflui do disposto no artigo 2º que estabelece o princípio da presunção de boa-fé do particular, cuja aplicação ao direito tributário é inquestionável, haja vista a premissa da boa fé do contribuinte é inerente à cidadania fiscal.
Ao final, a referida MP alterou várias leis federais, entre elas o Código Civil em seu artigo 50. A redação em vigor estabelece que em casos de abuso da personalidade por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, poderá haver a desconsideração da personalidade jurídica para que determinadas obrigações possam ser estendidas aos bens particulares de administradores e sócios beneficiados, direta ou indiretamente, pelo abuso.
Destaque-se que na redação original não estava prevista expressamente a desconsideração da personalidade jurídica, nem a sua aplicação apenas aos administradores e sócios beneficiados pelo abuso, o que havia era uma regra da qual se deduzia que era possível a desconsideração da personalidade jurídica.
A nova regra define ainda o desvio de finalidade como a utilização dolosa da pessoa jurídica, que abarca tanto prática de atos ilícitos como o propósito de lesar credores. Tal regra também se aplica ao direito tributário, na medida em que a Fazenda Pública, na condição de credora, pode ser lesada intencionalmente pelo contribuinte.
Nesse contexto, merece destaque a previsão do § 4º do artigo 7º da MP 881/2019, que estabelece que “A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput, não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”.
As regras em questão podem, portanto, ser aplicadas à desconsideração de personalidade jurídica em matéria tributária em razão de constituição de grupos econômicos que não se amoldem às hipóteses contempladas na Lei das S/A, ou seja, quando tais estruturas sejam artificiosas e tenham o propósito exclusivo de reduzir ou postergar o pagamento de tributos. A nova regra não se aplica, no entanto, à responsabilidade tributária do sócio-gerente e do administrador, prevista no artigo 135 do CTN, já que esta é uma situação de responsabilidade por transferência e não uma hipótese de desconsideração de personalidade jurídica.
Para fins tributários, os grupos econômicos foram definidos no art. 494 da IN RFB nº 971/2009 e, recentemente, no Parecer Normativo COSIT/RFB 04/12/2018 foram delimitadas as hipóteses de solidariedade – conforme disposto no artigo 121 do CTN – e de desconsideração da personalidade jurídica.
Ainda, a Lei nº 10.522/2002 que dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais também foi alterada pela MP 881/2019. Entre as modificações nela promovidas está a previsão da constituição de Comitê formado por integrantes do CARF, da RFB, do Ministério da Economia e da PGFN, para edição de súmulas.
Tal regra merece críticas pois, ao alterar a sistemática atual de edição de súmulas pelo Carf, subtrai a participação de representantes da sociedade civil na sua elaboração, como vinha acontecendo até agora.
Finalmente, foram introduzidas regras que dispensam a RFB de constituir créditos tributários e a PGFN de inscrevê-los em dívida ativa. Foram ampliadas as hipóteses em que a PGFN fica dispensada de contestar, oferecer contrarrazões e de interpor ou de desistir de recursos (art. 19 da Lei nº 10.522/2002).
Ainda, autorizou-se a PGFN a realizar negócios jurídicos processuais, dispensando a prática de atos e autorizando a desistência de recursos interpostos, quando o benefício patrimonial almejado com o ato não atender aos critérios de racionalidade, de economicidade e de eficiência.